Pegando carona nesta postagem do blog Rainha Vermelha, e também nos comentários que o Amálgama recebeu após publicar meu texto sobre homeopatia, queria comentar algo sobre o triste estado em que se encontra o chamado “senso crítico” hoje em dia.
Como Descartes já havia dito a respeito de “bom senso”, “senso crítico” é um item extremamente raro, na medida em que é valioso e, ao mesmo tempo, todas as pessoas parecem satisfeitas com o tanto que têm. Ao contrário da maioria das coisas a que a humanidade dá valor — dinheiro, fama, saúde ou beleza, por exemplo — e das quais muito nunca parece chegar a suficiente, com o “senso crítico” tudo mundo está satisfeito.
Infelizmente, a amostra disponível no mundo virtual sugere que quase todo mundo se contenta com muito pouco. As ocorrências do que passa por “senso crítico” nas caixas de comentário de blogs e reportagens me lembram do meu tempo de faculdade de Jornalismo, quando as corporações de mídia eram a Grande Besta e qualquer defesa dessas companhias com base no princípio da liberdade de imprensa era rebatida com um sorriso sardônico e a frase de efeito: “Liberdade de imprensa ou liberdade de empresa?”
O que é uma boa frase, mas um péssimo argumento. Digo, se você não gosta, digamos, da linha editorial do Estadão e está disposto a fazer algo a respeito — além de cancelar sua assinatura, o que é um jeito de votar usando o cartão de crédito –, a liberdade de empresa é o que lhe permite investir o quanto quiser (ou o que conseguir emprestar no banco, ou arrecadar com outras pessoas também insatisfeitas) na criação de um novo jornal que diga exatamente o que você acha que deve ser dito. Enfim, num ambiente livre de censura estatal, a liberdade de empresa é o que viabiliza a liberdade de imprensa. Simples assim.
No mundo virtual, a frase de efeito é “a quem isto serve”. Ela é extremamente ecumênica: ambientalistas exaltados usam-na contra quem argumenta em favor dos transgênicos; negacionistas do clima usam-na contra ambientalistas; esquerdistas usam-na contra a direita; direitistas, contra a esquerda. O novo Código Florestal deixa de ser discutido com base em seus méritos (extremamente duvidosos, de acordo com amplo consenso científico), e passa a ser tratado como um Fla-Flu entre agentes subversivos a soldo de ONGs estrangeiras com fins inconfessáveis e a ganância desmedida do agronegócio predatório. (A ironia de ser um deputado do PCdoB — provavelmente a agremiação mais acusada, em toda a história brasileira, de fazer subversão a serviço de potências estrangeiras — o principal denunciador dos inomináveis laços internacionais críticos do código não tem nada a ver com esta postagem, mas é boa demais para que deixe de ser mencionada.)
O que vou escrever agora talvez seja uma novidade bombástica para muita gente envolvida em debates travados via Twitter, em listas de e-mail e nas seções de comentários dos blogs: fechar-se numa igrejinha ideológica e lançar suspeitas de conspirações funestas e intenções macabras sobre quem discorda da, ou questiona a, teologia da sua seita particular não é exercer o senso crítico. É abster-se dele.
E é também um gigantesco exercício de preguiça mental. Se o argumento X me parece inatacável e não tenho nada a oferecer para contrapor aos dados Y, sou livre para ignorar aquilo tudo e continuar com meus preconceitos queridos, porque quem articulou X e apresentou Y é um mau caráter mal intencionado.
Esse atalho heurístico pode ser útil se você é o Super-Homem e Lex Luthor está tentando lhe convencer a deixá-lo apertar o botão vermelho onde está escrito SELF-DESTRUCT, mas no geral a saída mais honesta é pedir um tempo, raciocinar a respeito do argumento e pesquisar sobre os dados antes de cristalizar uma conclusão.
Em lógica, às vezes se diz que uma pessoa que se recusa a reconhecer a conclusão válida de um argumento está sendo “perversa”. Por exemplo, é uma “perversidade” aceitar que todos os homens são mortais e que Sócrates é um homem, mas negar que Sócrates seja mortal. A questão “a quem isto serve” pode até ter mérito em alguns contextos mas, da forma como vem sendo usada no debate online, basicamente só serve para acobertar preguiça e perversidade. Com o bônus de fazer quem a usa passar por esperto — mas só dentro da igrejinha.
Como Descartes já havia dito a respeito de “bom senso”, “senso crítico” é um item extremamente raro, na medida em que é valioso e, ao mesmo tempo, todas as pessoas parecem satisfeitas com o tanto que têm. Ao contrário da maioria das coisas a que a humanidade dá valor — dinheiro, fama, saúde ou beleza, por exemplo — e das quais muito nunca parece chegar a suficiente, com o “senso crítico” tudo mundo está satisfeito.
Infelizmente, a amostra disponível no mundo virtual sugere que quase todo mundo se contenta com muito pouco. As ocorrências do que passa por “senso crítico” nas caixas de comentário de blogs e reportagens me lembram do meu tempo de faculdade de Jornalismo, quando as corporações de mídia eram a Grande Besta e qualquer defesa dessas companhias com base no princípio da liberdade de imprensa era rebatida com um sorriso sardônico e a frase de efeito: “Liberdade de imprensa ou liberdade de empresa?”
O que é uma boa frase, mas um péssimo argumento. Digo, se você não gosta, digamos, da linha editorial do Estadão e está disposto a fazer algo a respeito — além de cancelar sua assinatura, o que é um jeito de votar usando o cartão de crédito –, a liberdade de empresa é o que lhe permite investir o quanto quiser (ou o que conseguir emprestar no banco, ou arrecadar com outras pessoas também insatisfeitas) na criação de um novo jornal que diga exatamente o que você acha que deve ser dito. Enfim, num ambiente livre de censura estatal, a liberdade de empresa é o que viabiliza a liberdade de imprensa. Simples assim.
No mundo virtual, a frase de efeito é “a quem isto serve”. Ela é extremamente ecumênica: ambientalistas exaltados usam-na contra quem argumenta em favor dos transgênicos; negacionistas do clima usam-na contra ambientalistas; esquerdistas usam-na contra a direita; direitistas, contra a esquerda. O novo Código Florestal deixa de ser discutido com base em seus méritos (extremamente duvidosos, de acordo com amplo consenso científico), e passa a ser tratado como um Fla-Flu entre agentes subversivos a soldo de ONGs estrangeiras com fins inconfessáveis e a ganância desmedida do agronegócio predatório. (A ironia de ser um deputado do PCdoB — provavelmente a agremiação mais acusada, em toda a história brasileira, de fazer subversão a serviço de potências estrangeiras — o principal denunciador dos inomináveis laços internacionais críticos do código não tem nada a ver com esta postagem, mas é boa demais para que deixe de ser mencionada.)
O que vou escrever agora talvez seja uma novidade bombástica para muita gente envolvida em debates travados via Twitter, em listas de e-mail e nas seções de comentários dos blogs: fechar-se numa igrejinha ideológica e lançar suspeitas de conspirações funestas e intenções macabras sobre quem discorda da, ou questiona a, teologia da sua seita particular não é exercer o senso crítico. É abster-se dele.
E é também um gigantesco exercício de preguiça mental. Se o argumento X me parece inatacável e não tenho nada a oferecer para contrapor aos dados Y, sou livre para ignorar aquilo tudo e continuar com meus preconceitos queridos, porque quem articulou X e apresentou Y é um mau caráter mal intencionado.
Esse atalho heurístico pode ser útil se você é o Super-Homem e Lex Luthor está tentando lhe convencer a deixá-lo apertar o botão vermelho onde está escrito SELF-DESTRUCT, mas no geral a saída mais honesta é pedir um tempo, raciocinar a respeito do argumento e pesquisar sobre os dados antes de cristalizar uma conclusão.
Em lógica, às vezes se diz que uma pessoa que se recusa a reconhecer a conclusão válida de um argumento está sendo “perversa”. Por exemplo, é uma “perversidade” aceitar que todos os homens são mortais e que Sócrates é um homem, mas negar que Sócrates seja mortal. A questão “a quem isto serve” pode até ter mérito em alguns contextos mas, da forma como vem sendo usada no debate online, basicamente só serve para acobertar preguiça e perversidade. Com o bônus de fazer quem a usa passar por esperto — mas só dentro da igrejinha.
Jornalista e escritor. Autor de dois romances de ficção científica e de vários contos, publicados em papel e online. De 2005 a 2010, foi editor de ciência do estadao.com.br.
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